O trabalho de Rosana Ricalde é tão minucioso (quase obsessivo, talvez terapêutico) que o fato dela manter escravos chineses em seu ateliê era, para mim, quase uma certeza. Resolvi, então, visitar sua casa e ateliê em Rio das Ostras, onde vive com o marido Felipe Barbosa, artista que também admiro há anos. Ela, delicadeza e lirismo. Ele, ironia com toque sociológico.
O ponto de encontro foi em Botafogo, onde Felipe e Rosana mantêm um apartamento e reserva técnica para eventuais encontros com colecionadores e curadores. Pé na estrada. No caminho me contam sobre a experiência de ter uma galeria. Explico: entre 2010 e 2013 o casal comandou, em parceria com o colecionador Álvaro Figueiredo, a Cosmocopa (um trocadilho esperto entre a “Cosmococa” de Hélio Oiticica e “Copacabana”, onde o espaço foi aberto) para dar oportunidades a jovens artistas e também para entender um pouco melhor o lado de lá do mercado... o dos galeristas. “A experiência na Cosmocopa nos ajudou a entender aspectos do processo de venda e divulgação da obra que não eram tão claros [enquanto ‘apenas’ artistas]. Percebemos que existem sim colecionadores indecisos e que algumas obras, apesar de muito boas, simplesmente não despertam interesse.”, explica Rosana. “É, muitas vezes, complicado explicar isso ao artista e controlar a ansiedade deles.” completa Felipe, que conheceu sua mulher ainda em 1998, quando ambos estudavam artes plásticas na UFRJ. “Dividíamos um ateliê em Niterói com outros artistas da universidade, mas no início ela nem olhava para mim”, brinca.
A primeira a apostar no trabalho dos dois foi Laura Marsiaj (uma verdadeira caça talentos, devo ressaltar). Em São Paulo, passaram também pela Casa Triângulo e Baró. No ano passado, Rosana Ricalde entrou para o time da galeria paulista Emma Thomas, onde vai expor a primeira individual em abril deste ano, e Felipe Barbosa selou parceria com Sérgio Gonçalves, que vai abrigar, em seu espaço no centro do Rio de Janeiro, uma mostra do artista em junho de 2014.
Chegando em Rio das Ostras, pastel de camarão na beira da praia onde eles costumam levar os filhos para um mergulho: Benjamin, com apenas 3 primaveras, e Aurora, que, aos 7 anos, já reclama pelo próprio ateliê. Hoje ela trabalha ao lado da mãe fazendo micro desenhos devidamente classificados e guardados em diferentes caixinhas de fósforo. Influência dos pais que adoram colecionar e agrupar coisas? Imagina. Ela já é uma mini Felipe!
Na sala, móveis artsy assinados por Felipe, como as estantes recobertas de dinheiro picado e as poltronas de acrílico preenchidas com pedaços de espuma, artesanatos que Rosana gosta de garimpar na loja do artista popular no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular, no Catete. Entre obras de grandes nomes como Cildo Meireles, Hélio Oiticica e Vik Muniz, peças de jovens promissores como Louise D.D. e Lin Lima – ambos foram assistentes e apostas da galeria do casal.
No jardim, pés de acerola e manga, casa na árvore para as crianças, pássaros que deram vida às esculturas do pai da família (construindo seus ninhos dentro das casinhas agrupadas em formas geométricas) e Manoelita – tartaruga da família que virou musa inspiradora do artista apaixonado por hexágonos. Pergunto “Bolaruga?” Ele confirma: “A forma do casco dela é linda. Quando percebi a forma hexagonal dele, resolvi usar a Manoelita para fazer o molde da escultura”.
Estamos falando de uma das obras cuja inspiração vem de uma visão muito particular do cotidiano: o mundo, para Felipe, é sempre matemático. Ele enxerga formas e signos onde menos se espera: se nós, simples mortais, vemos somente uma casa de passarinho, ele vislumbra uma série de desenhos feitos a partir de diferentes combinações e sobreposições – bandeirinhas à la Volpi, triângulos, quadrados e os mesmos hexágonos do casco de Manoelita. O polígono de seis lados é o preferido do artista. Também são extraídos de azulejos, fichas dos anos 1960 e bolas de futebol (!) para virarem obras de arte.
A série feita a partir do artigo esportivo, talvez pelas inúmeras possibilidades de cores e estampas, é uma das vertentes mais conhecidas de seu trabalho: ele as descostura para montar painéis com patchworks belíssimos. Geometria abstrata. Outro grupo de telas não somente belas, mas bastante instigante é a Mapas de consumo.O artista coleta tampas de garrafas em uma determinada cidade e as agrupa para provar quais os produtos de preferência da população local.
Urso de bombinhas que atraem e, ao mesmo tempo, repelem; esculturas de fósforo ou um “homem bomba” inflamável com formas que já nascem anunciando a sua eventual destruição; uma mala literalmente “de dinheiro”; martelo feito de pregos – Felipe se apoia em conceitos culturais pré-estabelecidos e cria um estranhamento. São hiatos entre o que vemos e o que esperamos ver.
A falsa aparência, fragilidade e crítica de forma irônica – lembrando que todo bom comediante é, antes de tudo, um grande observador do cotidiano – permeiam toda sua obra. São características muito bem definidas por Guilherme Bueno: “Ele possui uma disciplina ‘mondriânica’ no seu empenho – que traça dentro deste oceano de referências um processo a um só tempo de amálgama e permutação, de literalidade, calculada redundância, mas, por isso mesmo, recodificação (...) transita dentro do que já chamamos em outra ocasião de construtivismo low profile, isto é, a justaposição de um pensamento formal inspirado nas vanguardas históricas submetida a tecnologias mambembes e frágeis”.
No café da manhã, tapioca e suco de acerola colhida no quintal. O casal me conta como construíram o ateliê atrás de casa. Cada detalhe foi pensado para atender demandas da produção: luz natural para aliviar a visão de Rosana, pé-direito alto para as obras monumentais, um espaço aberto para evitar o cheiro do spray, reserva técnica e uma pequena oficina.
E, se ele é apaixonado pela geometria e significado das coisas, ela é amante das linhas orgânicas e da literatura. Ele fala do consumo das cidades e ela investiga as memórias dos centros urbanos – já desenhou, inclusive, uma “planta de memória” da cidade de Natividade (sua terra natal no interior fluminense) com o nome de cada um dos moradores. Letras minúsculas em forma de ondas enumeram – orgânica e poeticamente – os nomes dos mares do mundo inteiro; telas com cerca de 4 mil nomes escritos com uma rotuladora manual; e o recorte meticuloso de trechos de livros formando desenhos de labirintos ou figuras inspiradas em tapetes orientais. Dá dor na vista e nas costas só de olhar! Mas o trabalho de Rosana Ricalde vai muito além da paciência e virtuosismo.
Objetivo principal: dar corpo às palavras – interesse que começou com a leitura de As Palavras e as Coisas, de Michel Foucault, e A busca da língua perfeita, de Umberto Eco. A exposição que marcou o encontro de sua linguagem foi, segundo a artista, Alfabeto dos Verbos, em 2002. “Datilografei todos os verbos da língua portuguesa (são 14 mil) em etiquetas colando-os em 42 painéis”, explica. Daí foi um pulo para a comunhão da literatura e artes plásticas. Um poema de Carlos Drummond de Andrade virou instalação com 21 fotografias, enquanto o de Cecília Meireles se concretizou em um quadro feito com fita rotulada. De Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago, ela retirou as palavras luz, escuridão, olhar e ver para montar a obra.
O amor pelos mapas nasceu depois da leitura de Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino, e, em seguida, As viagens de Marco Pólo – inspirações de respeito para as plantas que Rosana fez do Rio, Londres, Lisboa, Barcelona, São Paulo, entre outros. Outro encontro importante foi com o mar: “Foi em San Juan. É lindo. Acho que é uma coisa de estar imerso: em todo lugar que você vai tem um pedacinho do mar”, explica a artista, que também se encantou pelo poema de autor desconhecido chamado O Navegante. Os trabalhos que vieram depois são, segundo Rosana, bonitos e menos intelectuais do que os anteriores. Sobre a série, ela comenta: “É a imagem que eu tenho do mar, um emaranhado de palavras, não pego um desenho de mar e faço em cima. Até porque, qual é a forma do mar? O mar não tem forma. É a água e o vento batendo ali.”
Depois da viagem com Felipe para Istambul, se apaixonou pelo Oriente. O resultado? Trechos de As Mil e uma Noites ganharam as formas dos tradicionais tapetes do local. A referência de um dos desenhos, ela me mostra, é da contracapa de Gulistan – o Jardim das Rosas, um dos clássicos da cultura literária e espiritual do oriente islâmico. Próximos trabalhos? Os livros de cabeceira dela apontam uma direção: “Achei esta publicação que se chama Os Mil e um Dias e a história dele é exatamente o oposto de As Mil e uma Noites”
Os chineses não existem. Quem ajuda Felipe com a costura das bolas é seu pai, já os trechos para as plantas de Rosana são recortados pela ex-mulher de seu pai, Lourdes, e sua própria mãe, Ana. Todo o espaço – casa e ateliê – está contaminado, no entanto, de paixão pela arte e impressionante disciplina de ambos. Sobre a mudança para Rio das Ostras, Felipe comenta. “Fomos assaltados algumas vezes no Rio e também conseguimos nos concentrar mais no nosso trabalho por aqui, já que não tem tantos eventos e festas”. A vista para o mar do píer no final da rua deles, sem dúvidas, também ajuda!