Ele cortou os cachos. Ainda sim, a cara de menino esconde os 40 anos de muita ralação. Para quem pensa que “virar artista” é algo que acontece da noite para o dia, repare na história de Henrique Oliveira, que participou de importantes bienais e de exposições em lugares como o Palais de Tokyoe o Château de Chaumont, mas já fez de um tudo: entregou pizza, colheu tomate cereja de joelhos, cavou uma trincheira, entregou jornais, trabalhou como pedreiro assentando azulejos, fez estamparia de camisetas, vendeu seus quadros por 150 reais e fez animações. “É preciso ser um pouco vagabundo para ser artista”, ele me disse em seu ateliê, na Lapa, em uma sexta-feira a noite, ao som de Queens of the Stone Age. Depois de ouvir toda a sua história, eu diria “É preciso ter muita coragem e força da vontade para ser artista”.
Ele nasceu em 1973, em Ourinhos, no interior de São Paulo, e cresceu nadando em rios e cachoeiras, entre poltronas e mesas da loja de móveis dos pais. Aos 16 anos, veio para São Paulo para estudar. “Não sabia que existia faculdade de Artes Plásticas e resolvi tentar arquitetura e publicidade”, explica o artista. Logo, ele viu, no entanto, que o curso da ESPM não iria satisfazê-lo e resolveu estudar inglês em Cambridge. “Ia voltar para o Brasil dali 5 dias, quando conheci um israelense que incentivou a ir trabalhar em seu país. Desmarquei a passagem e fui”. Henrique é assim. Tranquilo, ele deixa a vida lhe levar. Este jeitão sussa dele de ser, aliás, já ficou bastante claro quando visitei a montagem de Transarquitetônica, no Mac: “brother” dos assistentes, mas ainda consegue ser respeitado como “chefe”... ali no meio deles comendo churrasco, pão de queijo e tomando cerveja na caneca.
Formou-se publicitário e começou seu primeiro curso de pintura com Paulo Whitaker e Celso Orsini, enquanto fazia pequenos jobs em agências para se sustentar. Olha ele aí fazendo o que dava na telha: “Em um Natal fui para Ourinhos e não voltei mais”. Montou, então, um ateliê na antiga marcenaria de seu pai, na qual começou a fazer estampas de camisetas com um amigo. Nas horas vagas, pintava. Os quadros? Eram vendidos por 150 reais. “Gostava mais de pintar e ganhava mais dinheiro com os quadros do que com a estamparia”, se diverte o paulista que, nesta época, chegou pintar uma boate em Ourinhos.
Quase dois anos depois, voltou para a cidade grande para se dedicar exclusivamente à pintura. No MUBE, retomou as aulas com Paulo Whitaker e conheceu seu novo ídolo: Nuno Ramos. “Gostei das colagens dele e do jeito que ele pintava aglomerando coisas do mundo real” – foi aí que Henrique, sem saber, começou a se destacar como pintor nada clássico: se Nuno oferece a própria desconstrução da ideia de pintura –ainda na década de 1980, usava graxa, estopa, pedaços de madeira, entre outros materiais que tivesse à mão –, Henrique se destaca no mercado de arte contemporânea internacional com suas “pinceladas de madeira”, enquanto muitos de sua geração se limitam a lutar com as tintas.
Explico: Foi ainda durante o curso na ECA que o artista começou a olhar com carinho para as lascas de madeiras que evoluiu para a série Tapumes – apesar das expressivas (e um tanto psicodélicas) pinturas, são as instalações de Henrique, que desafiam a arquitetura e questionam a maneira como a sociedade olha para as favelas, que andam ganhando notoriedade internacional. “Na época da faculdade, ninguém tinha dinheiro para comprar material e muitos alunos usavam materiais de construção. Além disso, estava estudando desenhos sem profundidade, o que me levava a um interesse especial para a pesquisa de materiais dentro da própria linguagem da pintura”, conta o artista.
Os pedaços de tapumes, então, logo viraram suporte para suas tintas esmaecidas e, aos poucos, foram ganhando corpo tridimensional. “Comecei fechando ambientes com as madeiras pintadas. Quando percebi que elas eram flexíveis, comecei a usar tubos de PVC e compensado para dar-lhes forma”.
Tudo começou, portanto, como pinceladas pouco tradicionais e se transformou em obra instalativa. Nas palavras de Ricardo Resende:
“Não é tinta, mas os próprios restos de madeira que dão o colorido a suas “pinturas”. Passariam longe de pinturas construtivas formais. Estariam mais para a arte abstrata gestual diante da aparente despreocupação na sobreposição das lâminas de madeira.(...) São as mesmas ondas dos mares revoltos vistos nas pinturas do inglês William Turner (1775-1851). Ou o mesmo desprendimento do gesto de pintar ou intervir na superfície da tela visto na obra do norte-americano Jackson Pollock (1912-1956), com suas pinturas de ação que registram o gesto de jogar-se sobre a tela”.
Não à toa, Henrique foi chamado para fazer uma homenagem a Turner, no British Council, em 2007. Coloque uma obra ao lado da outra...o diálogo é impressionante e belo. Henrique foi, assim, se apaixonando pelas lascas que retirava dos tapumes. “Gosto das diferentes camadas e das veias, que criam uma noção de movimento para a obra final.”
O turning point de sua carreira, segundo o artista, tinha sido um dois antes, com sua participação em uma exposição no Centro Universitário Mariantonia, para a qual fez uma escultura de tapume levemente arredondada, e, em seguida, no Ateliê Amarelo, usando tubos de PVC. Nesta mesma época, ele começou a olhar para os tapumes para além da atração pictórica. “Na verdade nunca tive a intenção de criticar nada, mas esta discussão, da relação entre as ocupações urbanas desordenadas e os problemas do corpo humano (as doenças e o câncer) surgiu a partir de uma pesquisa estética e material. Foi a parir daquilo que eu estava fazendo que pensei no trabalho com esta metáfora: ele dava forma ao modo como a sociedade, os políticos, a mídia, sempre trataram as formas “favelizantes” de ocupação dos espaços vazios das grandes cidades”, esclarece. – daí as formas parasitas, que lembram tumores, de algumas de suas esculturas.
Na mostra Itaú Contemporâneo – Arte no Brasil 1981-2006, ele cria, pela primeira vez, uma instalação com a ideia de uma casa, ou melhor, uma caverna, em uma clara inspiração na primeira grande instalação de que se tem notícia, a Merzbau (1937), do alemão Kurt Schwitters. “É uma referência para todas as minhas instalações que permitem a entrada do corpo. Merzbau é um trabalho muito importante, mas que pouca gente viu porque foi destruído na segunda guerra”.
A ideia evoluiu, e Henrique ganhou confiança para um diálogo cada vez mais radical com os espaços expositivos – pense nos trabalhos apresentados na Bienal do Mercosul de 2009. A história da arte apareceu mais uma vez em A origem do terceiro mundo, apresentada na Bienal de São Paulo, em 2010. Ali, ele retomava a tela A origem do mundo, de Gustave Courbet e nos convidava a explorar as entranhas de sua gigantesca “pintura” (voltando, mais uma vez a Merzbau) ou do útero da mulher – para quem visitou, lembre-se: para atravessá-la era necessário encolher-se como um feto. “É uma pintura que pulsa. Um corpo vivo que parece crescer e se expandir”, descreveu Resende. No título, uma ironia ressalta as condições da existência de um “terceiro mundo”, o que transforma a instalação em obra política.
Note: O diálogo com Courbet não se restringe a este trabalho. O francês pintou também muitas cavernas e mares revoltos. São paisagens e vistas marítimas com viés romântico e cavernas que nos convidam a penetrar em seus interiores escuros e úmidos. Outros pintores que Henrique admira? Paul Cézanne, Édouard Manet, Gerard Richard, Willem de Kooning e Peter Doig. “Mas não gosto dessa pintura realista do Gerard Richard. Prefiro as abstratas”, esclarece antes que eu anote qualquer coisa no meu caderninho! Comentário que faz bastante sentido quando ele comenta suas obras “As minhas instalações são pinturas feitas com algo que pertence às ruas e o mundo real [tapumes], e não apenas uma tentativa de representação literal desta realidade”.
Quando idealizou Baitogogo, exposta no Palais de Tokyo, ele começou a pensar sobre as estruturas arquitetônicas racionais e minimalistas. “Outro aspecto que me interessa é a transição pela qual a matéria prima passa: a madeira vem da natureza; é cortada em estruturas geométricas para ser usada pelo homem; em seguida, é descartada. Aí pego de volta este material rejeitado e o transformo em obra de arte, cujo formato retoma a forma orgânica original”, explica. Não à toa, sua Transarquitetônica, exposta no Mac de São Paulo até 30 de Novembro, é não só a maior, mas a mais completa obra de Henrique: na entrada, a representação do cubo branco (ápice da arquitetura racional) que, aos poucos, começa a se ramificar e ganha paredes de barro ( referência direta às favelas e às construções vernaculares). Estes espaços, em seguida, se transformam em túneis de madeira que terminam em “raízes” feitas a partir de árvores do Ibirapuera. “Não é só um objeto, mas uma experiência completa. Quero instigar todos os sentidos quando as pessoas andam dentro da obra: a textura, o cheiro e o som das lascas de madeira quebrando quando pisadas”.
Ou seja, Henrique começa no museu, passa pelas favelas e termina na natureza. Aqui, ele fala dos três principais aspectos de sua obra: 1. A escultura como pinturas tridimensionais e as lascas como pinceladas. 2. Discussão sobre a maneira como as favelas são vistas pela sociedade (um tumor arquitetônico!) e questionamento da arquitetura racional. 3. A própria origem, destino e formas da madeira, sua principal matéria prima.
Em Transarquitetônica, Henrique parece desviar das colunas de Oscar Niemeyer, mas expor em um prédio que virou ícone da arquitetura moderna foi crucial no momento de elaboração da obra. “O ideal utópico de Niemeyer é muito distante da realidade do resto do país. Minha vontade era, portanto, desconstruir este espaço e convidar o publico a se desligar desta realidade organizada”, aponta.
No texto de Tadeu Chiarelli, curador da mostra: O artista não projetou mais um espaço de passagem, de travessia. Transarquitetônica não se configura somente como tal, mas como um lugar, um trabalho de arquitetura que engloba pintura e escultura. Vivenciando seus diversos ambientes, ao mesmo tempo em que recebe vários estímulos que envolvem praticamente todos os seus sentidos, o visitante é instado a refletir sobre as diversas transformações passadas pela arquitetura desde o racionalismo modernista – que é a tônica que rege o edifício de Niemeyer onde a peça está inserida – até as cavernas que serviam de abrigo ao homem e à mulher há milênios.
Se o próprio Henrique já declarou que gostava de desenhar “coisas ligadas ao terror” desde pequeno, o curador Tadeu Chiarelli parece definir com precisão uma misteriosa incoerência: “Henrique continuou realizando suas pinturas de aparência agressiva e estridente, o que seria uma contradição frente à sua personalidade tão plácida, se a pintura – ou a arte como um todo – fosse uma mera expressão do “eu” do artista”. Com a roupa suja de tinta e um sorriso sereno constante, ele explica: “Sou um cara do mato”.