Apesar da relação próxima com David Bowie, Lou Reed e Laurie Anderson, não estamos falando de alguém que dividiria o palco com Madonna. Figura importante do movimento neoexpressionista nos anos 1980, Julian Schnabel vive, sim, “in a material world”, mas sua paixão é pela matéria mesmo. A primeira epifania foi em Barcelona: ao ver as obras de Gaudí, ainda em 1978, o artista e cineasta nova-iorquino se inspirou para fazer a série que o consagrou, Plate Paintings, formada por telas coma aplicação de pratos quebrados. De lá para cá, usou veludo, tapetes, lonas de caminhão, cera, conchas, chapas de raios-X e até pedaços de asfalto para se expressar. “As pessoas falavam sobre a morte da pintura quando comecei [início dos anos 1970] e, ao ver aqueles cacos nas fachadas, pensei que poderia introduzir uma nova linguagem – e dar vida – à pintura”. Introduziu, revolucionou e este mês desembarca no Brasil com duas exposições de peso: uma retrospectiva no Masp e uma individual na galeria Raquel Arnaud, que passa a representá-lo no país.
Schnabel logo percebeu que as novas superfícies poderiam dar um caráter arquitetônico a suas telas e que seu conflito seria sempre entre o suporte das obras e o desenho em si, fosse ele abstrato ou figurativo. Influenciado por Joseph Beuys, que se valeu de substâncias pouco usuais nas artes plásticas, ele enxerga pinturas em todos os lugares. “Acho que a palavra certa é ‘oportunidade’. Vejo oportunidades em todo e qualquer material – ou seja, é mais uma questão de reação do que de ação”. É o caso da série Untitled (Manalapan), feita a partir de cortinas queimadas pelo sol, encontradas em Prato, na Toscana. “São as marcas da natureza que me interessam, pois se transformam em uma espécie de mapa do tempo”. E, se as imagens brancas desses trabalhos lembram cisnes dançantes, as da série Ogni Angelo Ha Il Suo Lato Spaventoso são reproduções de cartões-postais de Capri dos anos 1930 que o artista achou em sebos.
Estas obras, ao lado da série Jane Birkin, pinturas feitas sobre tecidos de velas náuticas, e da série Basic Boating – na qual ele recupera fotos antigas de moças nuas em barcos –, ressaltam outro aspecto do trabalho de Schnabel: uma tentativa de ressuscitar imagens e materiais tidos como mortos. “É impressionante: quando imprimo essas imagens em telas, o que era renegado vira arte automaticamente”, analisa. E, para nos fazer olhar com mais cuidado, ele realiza suas interferências em lilás ou vermelho.
“É tudo uma questão de vida e morte”, conclui. E foi o falecimento do amigo Cy Twombly que o estimulou a criar crucifixos, formados por lonas de caminhão com pinceladas de gesso, como um grande statement de sua própria arte: o sentimento e a percepção da existência diante de todo o seu oposto. O fundo verde fica quase negro com as intervenções brancas, que, por sua vez, se tornam ainda mais brancas e imaculadas em contraste com o verde-escuro, como se a vida só pudesse acontecer com o conhecimento da morte, isto é, por meio da dor. “Pintei as telas depois de sua partida. Existe, claro, um desejo de conservar comigo a presença do Cy. É como se fosse um simulacro da vida”, confessa o artista louco por materiais, ao tentar “materializar” um amigo.
A falta – seja o esquecimento de imagens, o descarte de objetos ou a desmaterialização das pessoas – instiga e inspira. Diretor de filmes biográficos de nomes como Basquiat, Lou Reed, Jean-Dominique Bauby e Reinaldo Arenas, Julian Schnabel é bom mesmo em trazer a vida à tona.
Julian Schnabel: La Nil – Pinturas 1988-2014 –
Data: de 4 de setembro a 7 de dezembro
Local: Masp
Endereço: Av. Paulista, 1578, Bela Vista, São Paulo, SP
Horário: de terça a domingo, das 10h às 18h; quinta, até as 20h
Julian Schnabel
Data: de 4 de setembro a 4 de outubro
Local: Galeria Raquel Arnaud
Endereço: Rua Fidalga, 125, Vila Madalena, São Paulo, SP
* Matéria publicada em Casa Vogue #349 (assinantes têm acesso à edição digital da revista)