Carlos Augusto Lira é um homem de princípios. Não apenas no sentido moral. Sua coleção de arte brasileira, que ele calcula ter chegado ao majestoso número de 7 mil itens, exibe as peças inaugurais de muitos artistas.
“Tenho os primeiros Vitalinos, ainda sem assinatura”, conta, referindo-se a Mestre Vitalino, escultor do barro que criou figuras até hoje imitadas. Sem vagares no falar, Lira é capaz de contar detalhes de cada item do seu vastíssimo rol. E há também as histórias da casa em que vive há 43 anos.
Quando a comprou, bom mesmo era morar em Olinda. Lira, um natalense, ainda muito jovem, não podia pagar uma casa por lá, “graças a Deus”, ele diz, feliz com a morada no Largo de Apipucos, em Recife. Tudo começa do lado de fora, na calçada de pedras de lioz, que abarrotavam os navios portugueses. Aqui eles as descarregavam para retornar com nossa madeira a lhes servir de lastro.
Quando se ultrapassa a soleira, o piso é um tabuleiro cerâmico de autoria nobre: Francisco Brennand, que deu ao amigo o resultado irregular de suas mais tenras fornadas. “Olhe bem, veja como há rachaduras”, ele mostra, encantado com as imperfeições.
Mas o gosto pela arte não vem de família. Nasceu com Lira, como se a natureza lhe tivesse acrescentado um sentido: o de enxergar coisas belas. Nos anos 1970, trabalhou com Janete Costa, a arquiteta que descobriu o Brasil e o colocou nas residências, a fazer bonito com sua arte dita popular. Para ela, o jovem Lira deu de presente um Gallé.
Não tinha a menor ideia do que estava comprando, mas sabia que era bom. Ainda menino, arrematou com a mesada uma serigrafia de Carlos Scliar. Por isso, sua residência é um abrigo de preciosidades sem fim, a desfilar obras de Tarsila do Amaral, Samico (algumas inaugurais), Siron Franco e tantos outros.
A construção cresceu junto com as coleções e com o nascimento dos filhos Pedro e Joana, expandido-se para trás e para o alto, a fim de dar lugar às crianças e aos ex-votos, a Mestre Nuca, a Ana das Carrancas (as primeiras obras), a GTO, a Antônio Poteiro, às santas do pau oco. E Lira se põe a contar a história dessas grandes esculturas de madeira, que serviam ao contrabando na época da colonização, levando em seu interior ouro e diamantes para os gordos cofres portugueses.
Muitas peças são acomodadas sobre mobiliário de boa estirpe. Mas uma das mais bonitas, uma marquesa Império, de jacarandá, comprada na Bahia, é para o deleite de quem quiser se esparramar e observar a “tralha”, como diz Lira, sem desmerecer a coleção, que também visita outras latitudes.
No seu quarto, o tapete é da Turquia; as esculturas, africanas. Há peças vindas do Xingu. “Não gosto de nada muito arrumado. Prefiro as misturas.” E como se chega a um acervo dessa magnitude? “É o tempo, o olhar, a curiosidade, a emoção. Uma história não nasce da noite para o dia."
Da casa para o mundo
Entre os dias 18 de junho e 27 de julho, o Museu do Estado de Pernambuco, em Recife, exibe cerca de 2.500 obras da coleção de Carlos Augusto Lira. Embora seu acervo particular inclua outras regiões do Brasil, a mostra, intitulada A Lírica de Carlos Augusto Lira, tem como foco central as peças de barro e de madeira, além de pinturas feitas no Nordeste, muitas delas de origem pernambucana. A exposição tem início já nos jardins do museu, um palacete erguido no século 19, e continua como um passeio pelas obras de cada Estado nordestino. Não perca o catálogo primoroso elaborado para a ocasião.
* Matéria publicada em Casa Vogue #346 (assinantes têm acesso à edição digital da revista).