Um banhista sem cabeça está sentado confortavelmente no quebra-sol da fachada da Galeria Rabieh, em São Paulo. No solário da mesma construção, um respeitável senhor parece prestes a se lançar de um trampolim sobre o mar de telhados do bairro. Nas suas costas, há o buraco de um tiro. Se o manequim pintado fosse de carne e osso, a bala teria atravessado sua coluna vertebral e perfurado um pulmão.
Os banhistas são esculturas que ocupavam pontes sobre o Rio Pinheiros, o poluído curso d'água que já foi um dos espaços de lazer preferidos de São Paulo. Fizeram parte da instalação As margens do Rio Pinheiros. Quem mora na capital sabe que ela causou furor: muitos motoristas pararam e ligaram para o Corpo de Bombeiros. Achavam que os manequins estavam prestes a se suicidar. Era mesmo, a ideia do criador das intervenções, Eduardo Srur: tirar os transeuntes da rotina para mostrar a irracionalidade de um rio transformado em esgoto.
O artista não esperava que suas obras despertassem um sentimento forte a ponto de alguém decapitá-las, perfurá-las com balas ou banhá-las em tinta (também aconteceu). Mas, nessa entrevista para Casa Vogue, ele revela que achou a reação muito interessante.
"Isso é a violência que a gente tem em São Paulo, nos centros urbanos. O artista tem que ser inteligente o suficiente para absorver o golpe e devolver com um contragolpe". Isso ele faz na exposição Trampolim, aberta a quem chegar na Rabieh. Basta tocar a campainha e entrar.
Mesmo assim, o público deve ser bem diferente do passante comum que admira (ou depreda) as obras de Srur nas pontes. A galeria fica em uma construção minimalista recém–reformada na Alameda Gabriel Monteiro da Silva, rua de luxo da cidade, que corta o bairro dos Jardins. Embora torça para que o atirador apareça por lá, Lourdina Rabieh, a dona do espaço, duvida que isso aconteça. Ela espera atrair colecionadores. "Essas peças têm história", conta. "Eu adoraria ter uma delas em minha casa". Nesse caso, uma cabeça a menos pode até valorizá-las.
Veja abaixo a entrevista com Eduardo Srur:
Em 2011 você jogou boias no espelho d'água do Congresso Nacional com a inscrição "arte salva". Salva mesmo?
Arte é uma possibilidade de salvamento. Não vai salvar, necessariamente, uma pessoa, mas indica um caminho alternativo. Eu sou um caminho alternativo para a anestesia, para a convenção, para o que a gente julga ser uma coisa correta e adequada. Venho e trago outro ponto de vista dessa realidade.
A cidade impõe condições que nos afastam de elementos essenciais de pensamento, de reflexão. As pessoas muitas vezes acabam sendo absorvidas pelo cotidiano e deixam de prestar atenção a essa realidade. Meu trabalho modifica essa paisagem, que nos é imposta o tempo inteiro. Gera um curto-circuito visual que faz a pessoa sair daquela zona de conforto por alguns instantes. E, com sorte, você gera reflexão.
O paulistano vive em uma cidade muito imprevisível. De repente os motoristas de ônibus entram em greve e São Paulo fica debaixo de uma nuvem cinza. Por que sua arte não passa despercebida nesse caos?
Uso estratégias antes de pôr na rua. Por exemplo, uma escultura desse tamanhinho, que está aqui na galeria, acaba sacudindo todo um lado da cidade. Porque foi instalado em um local pensado, porque existe todo um contexto em volta. E isso acaba trazendo condições favoráveis para o trabalho não passar batido.
Seu trabalho tenta trazer arte para quem geralmente não a vê. Essa é a proposta de espaços como o Jardim das Esculturas, no bairro da Luz. Mas sua obra é muito diferente.
Esse é um interesse, uma preocupação minha: atingir o maior número de pessoas com uma mensagem de arte, porque você cria uma aproximação maior do público com o objeto artístico. É o que a arte contemporânea busca fazer e muitas vezes não consegue. Ela tem discursos herméticos, direcionados para um determinado segmento. Meu trabalho fala para todo mundo, é uma obra aberta. Isso vai acontecer na galeria. Vou criar uma exposição em que todo mundo pode vir.
A sua obra é tão aberta que as pessoas podem até degolá-la... Na sua opinião, por que deram um tiro na sua escultura?
Não sei se eu faria o mesmo (risos). Isso é a violência que a gente tem em São Paulo, nos centros urbanos. Mas é muito interessante: as respostas da cidade e a velocidade com que eu as absorvo. O artista tem que ser inteligente o suficiente para absorver o golpe e devolver com um contragolpe.
Essa exposição é um contra-ataque – no campo das ideias, da criatividade. Eu absorvo a degola, a tinta, o tiro, ressignifico tudo isso e devolvo para a cidade os resultados que ela me deu um mês atrás. É muito diferente de retirar a escultura e restaurar. Existe uma troca de comunicação do meu trabalho com a cidade. Quando você perde o controle, tem as melhores surpresas.
Mostrei umas fotos das garrafas no Tietê para o taxista que me trouxe aqui. Ele quis entender como você faz para financiar sua arte.
Tenho um lado muito empreendedor. Trabalho com o campo da criatividade e tenho interesse em ser uma pessoa que possa negociar minhas ideias. Elas valem, e muito. Trazem parceiros, empresas, pessoas físicas e interessados, para materializarem o que eu proponho para a cidade.
Você está dentro do sistema – o poder público autoriza sua obra; as empresas te financiam. Você se vê como um artista contra o sistema, a exemplo do inglês Banksy?
Todo mundo está dentro do sistema. O Banksy fala mal, mas está vivendo dele. Não existe mais o "fora da caixa". Você tem que estar dentro da caixa e entender as regras. Só tem um jeito de quebrar as regras do sistema: entender o jogo e depois propor uma mudança no meio do caminho. Eu não me vejo contra o sistema, mas absolutamente inserido nele, jogando e brincando com ele o tempo inteiro.
É muito romântica a ideia do artista não fazer parte do sistema. Isso não existe mais. Qualquer coisa que você faça, o sistema engole. É a Matrix. Quanto mais rápido você entender e responder a isso de uma forma criativa, melhor.
Não que seja fácil. Eu corro, trabalho, fico sem dormir. Recebo muito não. Isso é o que me diferencia de outros artistas que têm boas ideias, mas dificuldade de pôr em prática: a estratégia de procurar o sistema a meu favor. Você tem que jogar com o sistema. Acabei de descobrir isso.
Foi o taxista que perguntou como eu pago essas obras?
Foi. Talvez porque não tinha logomarca nenhuma. Por que é um jogo?
Porque meu trabalho é lúdico, caso contrário fica muito denso, chato. É um ponto de equilíbrio entre trazer crítica, reflexão, ser ácido, mas ao mesmo tempo ser bem-humorado. Eu sou um artista pop, falo com as massas e tenho interesse em aproximar as massas do meu universo artístico. Tem que ter humor em uma medida equilibrada. É como um bom papo.
Tem outro artista que é muito pop, Romero Britto. Seu trabalho é pop em outro sentido?
Romero Britto é um decorador. Não gosto da produção dele porque é raso, não tem crítica. Meu trabalho é um pop engajado, político, eu movimento uma esfera de pensamento; ele não, pinta uma obra decorativa.
Não gosto da obra dele, mas acho muito interessante: ele se tornou um outsider do circuito da arte pelo seu poder de realização – sem precisar do circuito da arte. Se você inverter um pouco a mesa, isso é sensacional. Eu acho o Romero Britto, como celebridade e como realizador, um caso muito interessante. Não sou a favor dessa leitura que os críticos fazem dele – simplesmente deixam o cara de lado.
Você começou na pintura, certo?
Eu vejo o mundo como um pintor. Depois, começo a ter essa inquietação e usar outras linguagens, que vão chegar à intervenção urbana. Nela eu posso fazer tudo o que quiser: ser um performático, escultor, videomaker, fotógrafo, pintor... O tempo todo eu estou usando a cidade como uma tela em branco onde pinto minhas ideias.
Trampolim
Data: até 17 de janeiro de 2015
Local: Galeria Lourdina Jean Rabieh
Endereço: Alameda Gabriel Monteiro da Silva, 147, Jardim América, São Paulo, SP
Horário: de segunda a sexta-feira, das 10h às 19h; sábados das 11h às 17h
Entrada franca