Em um primeiro momento, esta matéria parece não fazer sentido em uma revista de decoração... Deveria estar na New Scientist ou na Laboratory News. Quem leu a Casa Vogue deste mês já deveria imaginar que engenhocas em forma de arte pousariam em POA até novembro deste ano.
Explico: a charmosíssima curadora mexicana Sofía Hernández Chong Cuy queria, na 9ª Bienal do Mercosul, eliminar fronteiras. A ideia não é apenas abolir o limite entre os países do grupo político ao chamar artistas que trabalhassem o espaço cru – pense em mares e subsolos da terra –, mas também as fronteiras da inovação e da comunicação.
O resultado foi uma Bienal repleta de obras menos contemplativas e palpáveis, porém bastante interessantes. Nicolás Bacal foi o que mais me encantou: no canto do Memorial do Rio Grande do Sul, um dos prédios que abrigava as obras do evento, apenas um telefone e a espera de uma ligação. Pensando sobre os limites do tempo e comunicação, o argentino contatou Eloí Cruz, uma senhora de 70 anos que, segundo ele, é a responsável por anunciar a “hora certa” do Observatório Nacional. O artista a convidou para citar o poema O vetor da saudade,que escreveu especialmente para a Bienal, no mesmo tom robótico em que ela relata o horário a qualquer brasileiro que discar 130! A graça da obra é que Eloí combinou com Bacal que vai ligar de tempos em tempos para o telefone exposto no Memorial e o sortudo que estiver por lá, poderá escutá-la. Mas se você é ansioso demais, ligue para 0800-000-0130 e ouça uma gravação do mesmo poema que, vale notar, é inspirado justamente pela saudade desta voz esquecida pelos brasileiros por conta dos avanços tecnológicos.
Trechos de O vetor da saudade:
Observatório nacional; das vezes em que estivemos; incoerentemente juntos; como fios de átomos quentes (...) Observatório nacional; das derrotas do amor; em estádios repletos de amantes; chorando (...) Observatório nacional; dos erros quotidianos das nuvens; juntando formas que não dizem nada; enquanto um menino espera um sinal; do seu próprio coração (...) Em nível subatômico; o vetor do tempo; é indiferente; será assim também; o vetor da saudade?; a mentira não tem direção?; o amor é entrópico?; as palavras esgotam-se; e é tempo de te beijar finalmente?; e se virares o rosto?; sobreviverei?; ouço uma voz detrás da porta; “quem é?” pergunto; “observatório nacional” respondo; “o que quer?” pergunto; fico em silêncio; ouço duas veze ; minha respiração; sorrio
Ainda no campo da comunicação, Fernanda Laguna escreveu uma carta que foi colocada em uma garrafa e jogada no Guaíba na última sexta-feira. Destino imprevisível. Ato típico de desespero e também de esperança. A questão fica no ar: quem vai encontrá-la? E quando? Para os curiosos, uma cópia pode ser vista na mesma sala do telefone de Bacal.
Malak Helmy, por sua vez, viajou com um pombo correio por desertos e pelo mar mediterrâneo para gravar sons e ritmos de lugares marcados por eventos históricos que mudaram a experiência de tempo. Em agosto pombo deveria levar alguns sons coletados para o Cairo – gravando também o próprio percurso—, onde artista iria elaborar uma música. No entanto, manifestações políticas no país impediram o deslocamento do animal e uma jornada que deveria durar apenas 4 horas já havia se transformado em 624 até o dia da abertura. Na exposição, é possível escutar alguns dos sons coletados.
E se a inspiração são ruídos enigmáticos, confira a performance do egípcio Tarek Atoui. O novo queridinho das artes brincou com a apreensão de sons e sua mixagem. Atoui gravou por diversas vezes o som ambiente do presídio desativado que reside na Ilha das Pedras Brancas. Ao final de cada uma das fases, o som era transmitido de volta ao terraço da Usina do Gasômetro, um dos prédios de Porto Alegre onde está acontecendo a Bienal. Lá ele mixou ao vivo os ruídos obtidos, como parte da performance apresentada na última sexta e sábado. A trilha produzida, desta forma, jamais permanecia intocada. Ela estava em constante alteração, pois recebia adições – as gravações feitas nas novas visitas à ilha.
Outra série de trabalhos revela artistas que fazem a vez de cientistas malucos. Fritzia Irizar levou um “diamante” feito a partir de mechas de cabelo. A pedra exposta, no entanto, não foi feita com qualquer fio: ela usou cabelos de índias da tribo Tarahumara, que fica ao norte do México e que vem sofrendo com escassez de comida e água. Como a desnutrição se reflete na composição biológica do cabelo, a artista tenta cristalizar (metaforicamente) um retrato da fome. Hans Haacke montou uma mega instalação simulando a circulação do sangue e Robert Rauschenberg, apesar de conhecido pelas telas da pop art, foi representado por uma máquina em que um tanque de lama é ativado por ondas sonoras gravadas a partir de cantos de pássaros e barulhos de máquinas. Note: Rauschenberg chegou a se unir a engenheiros e outros artistas para monstar o grupo E.A.T. (Experiments in Art and Technology) para viabilizar outras experiências malucas.
Veja a seguir outros destaques da mostra:
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