Corpo e espaço sempre mantiveram uma relação íntima, ora complementar, ora de conflito. Quem melhor pode atestá-la são os sete dançarinos a seguir. Ana Botafogo, Eduardo Fukushima, Maria Noujaim, Thereza Aguilar, Mona Rikumbi, Gabriela Junqueira e Jarbas Homem de Mello mostram detalhes de suas casas e contam sobre momentos marcantes de suas trajetórias.
Ana Botafogo
Há uma pequena sala no apartamento da bailarina carioca Ana Botafogo, no Rio de Janeiro, onde reúnem-se pôsteres, prêmios, diplomas e fotografias que relembram mais de 40 anos de carreira. Apesar deste “hall da fama” no imóvel que habita há 25 anos, no Flamengo, ela ressalta: “Não faço nada de balé em casa. Aqui eu leio, descanso e recebo amigos.” Primeira bailarina do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, e uma das mais famosas do Brasil, hoje acumula diversas atividades. Administra uma loja de roupas e acessórios de dança que leva seu nome, a Ana Botafogo Maison; criou uma linha de calças jeans para a marca Scalon, e outra de sapatos e bolsas para a Soulier; inaugurou a escola de dança Âmbar + Ana Botafogo, em Niterói, além de dar workshops e palestras.
No Teatro Municipal, ministra aulas e com frequência participa de eventos, faz musculação e pilates. “Cada vez mais, eu estou do outro lado. Cada vez mais, eu estou fora dos palcos”, revela. “Uma coisa que gosto de fazer é ensaiar bailarinos profissionais.” Entre seus planos, há ainda o lançamento de uma biografia organizada por seu pai, e um livro de bolso para bailarinas. Também pretende em breve viajar com dançarinos para uma imersão de dança, assistir a espetáculos e aulas por meio de seu projeto ABC Dream, ao lado de Caio Nunes. “Precisamos urgentemente de mais produções. Temos bailarinos muito talentosos, coreógrafos surgindo, mas para a arte, precisa haver um mínimo de investimento”, reivindica. “Nós já provamos, e eu posso falar muito pelo Municipal, que sempre que se faz campanhas ou espetáculos mais populares, o teatro fica lotado.” Ana veste saia e blusa Cia. Marítima e sapatos de sua linha para Soulier
![Bailarinos renomados abrem suas casas e falam sobre corpo e espaço (Foto: Studio Tertúlia) Bailarinos renomados abrem suas casas e falam sobre corpo e espaço (Foto: Studio Tertúlia)]()
Eduardo Fukushima
O coreógrafo e artista paulistano tinha 19 anos quando apresentou o seu primeiro espetáculo solo. Batizada de Saídas, a performance foi seu début naquele mundo de movimentos e expressões quase hipnotizantes. “É como o nosso dia a dia: estamos sempre em circulação. Nossas angústias, problemas e crises estão o tempo todo em movimento, e não estagnados”, explica. Hoje, aos 35, desenvolveu Canto!, Entre Contenções, Como Superar o Grande Cansaço?, Oxóssi e Título em Suspensão. Fez residência em Taiwan sob orientação de Lin Hwai-min, fundador da Cloud Gate Dance Theatre, por meio da iniciativa Mentor and Protégé, da Rolex – que une jovens talentos a grandes nomes em diferentes áreas culturais.
“É uma paixão desde criança: me mexer, usar o corpo e suas diversas possibilidades de expressão. Ele é para ser vivido, explorado.” Eduardo também dá aulas de dança oriental no Espaço Sergipe, em Higienópolis, e sonha em transformar o lugar onde mora e divide com outros artistas, na Vila Prudente, na Zona Leste, em um estúdio para ensaios de dança contemporânea. “Esta casa une um pouco de vida e trabalho”, resume. Eduardo veste costume Ricardo Almeida, camisa Highstil e cinto Gucci
![Bailarinos renomados abrem suas casas e falam sobre corpo e espaço (Foto: Rogério Cavalcanti e Studio Tertúlia) Bailarinos renomados abrem suas casas e falam sobre corpo e espaço (Foto: Rogério Cavalcanti e Studio Tertúlia)]()
Maria Noujaim
Traços criados com fitas de vinil sobre um espelho e uma parede. Partituras. Desenhos com tinta preta. Estes são alguns detalhes que prendem o olhar quando se entra no apartamento da artista carioca Maria Noujaim, de 33 anos, no Rio de Janeiro. São os mesmos que aparecem em alguns de seus trabalhos performáticos, em que ela transforma símbolos em movimentos. Os elementos de seu repertório incluem as formações em história e história da arte, além de balé contemporâneo na Escola de Dança Angel Vianna, em 2012. “Eu investigava estruturas de linguagem espelhadas, palíndromos, anagramas”, explica a jovem, hoje representada pela Galeria Jaqueline Martins. “Poder criar linguagem como corpo era algo que me interessava.”
Na SP-Arte passada, a intérprete Júlia Anadam apresentou o seu trabalho Ponto e vírgula – uma performance de duração expandida, que rememora a retórica antiga, de recursos de oratória, em que se usava pontuação para criar persuasão no discurso. “Eu sempre tive muita dificuldade de me fechar em uma disciplina, então esse lugar de cruzamento de práticas é arte pra mim. É onde eu me encontro”, disse. Em seu apartamento – que ela deve deixar para trás, pois está de mudança para São Paulo – ainda brilha uma obra de aço de Eduardo Sued, um presente após uma visita ao ateliê do autor. Maria usa vestido Amissima
![Bailarinos renomados abrem suas casas e falam sobre corpo e espaço (Foto: Rogério Cavalcanti e Studio Tertúlia) Bailarinos renomados abrem suas casas e falam sobre corpo e espaço (Foto: Rogério Cavalcanti e Studio Tertúlia)]()
Thereza Aguilar
A carioca Thereza Aguilar tinha 27 anos quando decidiu desenvolver um projeto social em comunidades no Rio de Janeiro para ensinar balé. “Eu queria transformar a dificuldade que existe na dança, que é muito elitista”, relata. Ouviu comentários cheios de descrença, mas ao abrir as primeiras inscrições, no morro Pavão-Pavãozinho, na Zona Sul do Rio, recebeu 250 interessados em suas aulas. Em 25 anos de história, a Associação Dançando Para não Dançar acolheu 4 mil pessoas. Destas, 20 foram chamadas para dançar na Staatliche Ballettschule Berlin, na Alemanha.
Outro caso de sucesso foi o da carioca Ingrid Silva, de 29 anos, que hoje integra o conceituado Dance Theatre of Harlem, em Nova York. “A dança aqui, no Brasil, é considerada hobby, e não profissão”, argumenta. “A gente leva a coisa a sério, por isso conseguiu transformar tantas crianças.” Devido aos compromissos da escola, fica pouco tempo em casa e se reveza entre a sua, em Laranjeiras, e a de seu companheiro há dez anos, o músico Geraldo Azevedo, no Cosme Velho. Lá, gosta de relaxar no jardim, onde o imóvel datado dos anos 1930 carrega um ar bucólico, tem violões espalhados pelos cantos e obras de Acme, grafiteiro e artista plástico do Pavão-Pavãozinho. Thereza usa acessórios Verve e sapatos Ana Rosa
![Bailarinos renomados abrem suas casas e falam sobre corpo e espaço (Foto: Rogério Cavalcanti e Studio Tertúlia) Bailarinos renomados abrem suas casas e falam sobre corpo e espaço (Foto: Rogério Cavalcanti e Studio Tertúlia)]()
Mona Rikumbi
Estátuas de Exu, Ogum, Oxóssi, Iemanjá, Xangô, Obaluiaiê e Oxum recebem quem entra na casa de Mona Rikumbi, de 48 anos, no bairro de Americanópolis, periferia de São Paulo. “No candomblé, não adoramos imagens, mas elas são todas negras e colocamos aí para marcar território”, explica. A atriz, ativista e bailarina foi a primeira mulher negra que, sobre uma cadeira de rodas, dançou no palco do Theatro Municipal de São Paulo, em 2017. “Minha mãe dizia que, para sermos considerados regulares, temos de ser ótimos, porque somos negros e o mundo é mais cruel com a gente”, conta.
Diante disso, ainda criança, teve contato com tradições de origem africana, danças, cantigas. Quando adolescente, deu aula de dança afro para vítimas de violência doméstica. Aos 30, foi diagnosticada com neuromielite óptica. Depois, perdeu os movimentos das pernas. Em 2011, conheceu o grupo Arte Sem Barreiras, para bailarinos sobre cadeira de rodas. Encarou os estilos contemporâneo e do ventre na Associação Fernanda Bianchini, outra também voltada para pessoas com deficiência. Foi lá que surgiu o convite para o Municipal. Seu feito inspirou o documentário Mona – A Luta da Mulher Negra com Deficiência no Brasil, dirigido por Lucca Messer. Ela se lembra quando os médicos, há quase 10 anos, lhes deram pouco tempo de vida: “Se a morte é isso, estou de boa”, diz, rindo. Mona veste bata Cia. Marítima e sapatos Alme
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Gabriela Junqueira
“A dança não é só corpo e movimento, é espaço também”, diz Gabriela Junqueira, de 35 anos, em seu apartamento em Belo Horizonte, MG. Ela o divide com o marido, Pedro Pederneiras, e seus filhos, Rafael e Helena. Dançando desde os 8 anos, ingressou no conceituado Grupo Corpo aos 19, por incentivo de sua mãe. “Eu tinha 12 anos quando vi a apresentação deles pela primeira vez.” Sua rotina como bailarina equilibrava alimentação saudável, fisioterapia preventiva, pilates e treinos, muitos treinos. Conta que em uma apresentação, após um movimento impreciso ao lado de outro bailarino, fraturou um pé – mas só percebeu o trauma quando alcançou a coxia. “É impressionante a força e a adrenalina que a cena dá ao bailarino”, relata.
Após a segunda gravidez, porém, optou por sair dos holofotes e atuar nos bastidores, como ajudante de figurino, produção e montagem de espetáculos. Também resolveu encarar a faculdade de arquitetura. “Eu descobri o espaço na dança. Ela abre caminhos.” Gabriela veste saia e blusa Coven
Jarbas Homem de Mello
Único artista na família, Jarbas Homem de Mello, de 50 anos, não se contentou em cantar no coro da igreja na infância rural, em Novo Hamburgo, RS. Logo seguiu para as danças folclóricas da região e depois correu para o teatro, onde iniciou a carreira como ator musical. “A gente vive para estar em cena”, diz, no dúplex do Jardim Paulista que divide com a mulher, a também atriz e bailarina Claudia Raia, e enteados, Enzo e Sophia. Jarbas chegou à capital paulista com 24 anos e em duas semanas ingressou no teatro. “A dança sempre foi um plus na minha carreira”, disse.
Em seu currículo, se acumulam espetáculos de sucesso como Chaplin, Cabaret, Cantando na Chuva e O Fantasma da Ópera. Vencedor do Prêmio Bibi Ferreira, em 2014, com o musical Crazy for You, o bailarino compartilha alguns percalços na profissão: “Já caí bastante, o figurino já rasgou.” Alongamento e musculação fazem parte da rotina enquanto ele equilibra a dieta entre uma alimentação regrada e alguns prazeres. “Ontem comemos cheeseburguer”, confidencia entre risos. O casal utiliza a sala de piano e o lounge para o exercício vocal, de textos e ioga. Ele, que é padrinho do Balé de Paraisópolis com a mulher, ainda pretende criar um projeto social e artístico voltado para crianças e jovens de periferia. Jarbas veste camisa John Varvatos, calça e cinto D&G e gravata Gap
*Assistentes de fotografia: Isabela Takikawa e Lucas da Silva Melo Santos. Set design: Deborah Apsan e Daniela Arend. Styling: Kel Ferey, Studio Tertúlia, Yakini Rodrigues. Beleza: Andie Pontes, Luiz Bicalho, Raphael Venerucci e Theodoro Remigia.
*Agradecimentos: Artesol (tapete e tapeçaria do designer Alexandre Heberte, na foto de Mona Rikumbi); Dpot Objeto (vaso e luminária de piso, na foto de Eduardo Fukushima); Marie Camille (tapete Jo Vasconcelos), Pé Palito e Abatjour de Arte (móveis e luminária, na foto de Gabriela Junqueira)
**Esta reportagem foi publicada originalmente na edição de janeiro de 2020 (nº 413) da Casa Vogue.
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